Mel Com Cicuta 

Without the aid of prejudice and custom I should not be able to find my way across the room.

 

William Hazlitt  
      

   

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O bolo envenenado

Domingo, antes do almoço (que para mim, seria uma salada no guincho), na pastelaria do meu bairro, esperava pelo chá preto e olhava, sem fixar, a vitrine dos bolos. No Canas, como na maioria das pastelarias com alguma dimensão e fabrico próprio, vende-se bolos de aniversário. Bolos que aguardam, pacientemente, atrás do vidro, que quem os encomendou os venha buscar enquanto se exibem orgulhosamente aos transeuntes.
Estava, como sempre, naquele momento pós-acordar (qual recém-nascido que dirige, pela primeira vez, os sentidos para o mundo) no qual tenho extrema dificuldade em fixar a minha atenção, seja em imagens, sons, sabores... Mas, naquele momento, naquela pastelaria de bairro, uma coisa me arrancou ao estado de semi-vigília, como uma paulada na nuca.
Na vitrine dos bolos de aniversário jazia - e vão já perceber por que razão é este o verbo que mais fielmente descreve os factos - um bolo de aniversário, daqueles cuja cobertura é a reprodução de uma fotografia. A fotografia era do falecido actor dos Morangos com açúcar, Francisco Adam e, no canto inferior esquerdo, de fugida, na T-shirt do pequeno, um sentido "Parabéns Marta!"...
Não me pronunciei, porque achei que não teria mais nada a acrescentar sobre o tanto que se disse, e, sobretudo, porque, confesso, o meu interesse no tema é bastante diminuto, sobre a "canibalização pelos media da morte do jovem actor". Mas, algumas semanas depois, confesso que esta homenagem póstuma - em doce de ovos com topping de morango e caramelo - me deixou atónita. E se eu (sonolenta e desinteressada) fiquei francamente chocada, imaginem a pobre da Marta, certamente adolescente, a quem uma qualquer alma iluminada resolveu oferecer, no dia em que se celebra a vida, um bolo de aniversário com cobertura rigor mortis.