Mel Com Cicuta 

Without the aid of prejudice and custom I should not be able to find my way across the room.

 

William Hazlitt  
      

   

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Breve história d'O Homem Que Se Rejeitou A Si Próprio

A caminho do fim da noite, num bar da moda, ela esperava, sozinha, o regresso de um amigo que a tinha deixado por breves momentos.

[Ele] – Olá.
[Ela] – (Preparava-se para responder, quando percebeu que não iria a tempo. Limitou-se a levantar os olhos do copo).
[Ele] – Não precisas de dizer nada. Eu sei no que estás a pensar. (E prepara-se para começar um monólogo, fazendo as vezes dela).
[Ela] – (Em silêncio, com semblante a transitar do entediado para o aturdido).
[Ele] – (Começa a declamar, em discurso directo, como se estivesse dentro da cabeça da menina à sua frente): Mas o que é que este palerma quer? Está uma miúda aqui, sossegada, à espera do outro — que por acaso não é meu namorado, mas esta criatura nem tem como saber isso— que foi à casa de banho (que sentido de oportunidade atroz, devo dizer) e vem um tipo qualquer perturbar-lhe o sossego e as contas de cabeça que fazia à vida. (interrompe e observa-a).
[Ela] – (entre o silêncio boquiaberto e a mudez divertida).
[Ele] – (Prossegue) Como se não bastasse o topete, não é nada de jeito. Está bem que é alto, mas já vi tipos com melhor aspecto. Não se coaduna com os meus padrões estéticos, mais virados, a bem da verdade, para o look beto surfista. Que maçada! Logo agora que eu estava a tentar decidir qual daqueles dois pares de sapatos que vi esta tarde é que devo comprar... Se calhar devia comprar ambos, afinal um dia não são dias. E este tipo que não se vai embora? Está bem que não é repelente, mas será que não percebe que se eu quisesse companhia já teria sequer esboçado um sorriso, por mais pequeno que fosse?
[Ela] – (ainda em silêncio, fixando as pedras de gelo do whisky).
[Ele] – (mantendo o ritmo) Se calhar é maluco. A mim calha-me toda a espécie de malucos. Já não se pode estar, calmamente, em lado algum, e vem logo um pateta destes abordar-nos. Se ao menos ele tivesse graça...Espero que não seja um tarado. Não, não tem ar disso... E daí não sei, nos dias que correm há de tudo. Que inferno! E o G. que não volta... Será que devo dizer alguma coisa? Talvez gritar-lhe... Não, também não é assim tão mau. Pode ser que se eu ficar muito quietinha ele se vá embora.
[Ela] – (Silêncio).
[Ele] – Muito bem. O seu amigo está a voltar e eu sou o André e queria agradecer-lhe a simpática oportunidade que me proporcionou de dar mais esta tampa a mim mesmo. Foi um prazer falar por si. Boa noite.

Ele afasta-se, o amigo dela regressa e leva-a embora para a vida lá fora.

Isto, caro leitor, não é ficção, mas sim a linha de engate mais bem conseguida da história da humanidade. E, como estas coisas são, a bem da verdade, como a patinagem artística, apesar da visível insuficiência ao nível técnico, o jovem André — nome fictício, bom de ver — merece não menos que 17 de nota artística. Porque, afinal, andamos cá para nos irmos entretendo uns aos outros.

A linha de engate mais bem conseguida da história da humanidade não funciona em mulheres que bebem whisky. Se o "André" tivesse três dedos de testa saberia isso e teria poupado a si mesmo (mais) uma tampa.
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