“na cama tudo de conta”, não há segredos entre aqueles que a partilham, a cama é um confessionário. Por amor ou pelo que é a sua essência — contar, informar, anunciar, comentar, opinar, distrair, ouvir e rir, e projectar em vão ¬— trai-se os outros, os amigos, os pais, os irmãos, os consanguíneos e os não consanguíneos, soa antigos amores e as convicções, as antigas amantes, o próprio passado e a própria infância, a própria língua que deixa de ser falar a sem dúvida a própria pátria, aquilo que em todas as pessoas há de segredo, ou talvez de passado. Para lisonjear quem se ama denigre-se o resto do existente, nega-se e execra-se tudo para contentar e reasegurar apenas um que pode ir-se embora, a força do território que delimita a almofada é tanta que exclui do seu seio tudo quando não está nela, e é um território que pela sua própria natureza não permite que nada esteja nela excepto os cônjuges, ou os amantes que em certo sentido ficam sozinhos e por isso falam um com o outro e nada calam, involuntariamente. A almofada é arredondada e suave e, muitas vezes branca, e com o correr do tempo o arredondado e branca acaba por substituir o mundo, e a sua débil roda.
Javier Marias, Coração tão branco
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Posted by carlos freitas nunes | 3:20 da tarde