Mel Com Cicuta Without the aid of prejudice and custom I should not be able to find my way across the room.
William Hazlitt
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Numa noite de acuçenas, experimentara ouvir Satie no velho gira-discos da sala e mais uma vez sentiu que não estava só. Abrira-se a tampa do piano e este tocava como se mãos invisíveis o fizessem rasgar-se em notas ora delicadas, ora fortes. Aproximou-se e fechou instintivamente os olhos. Na nuca, aquela sensação de calor suave, como se o hálito quente da noite o afagasse, ou a respiração dela estivesse ali presente. Não se virou, sequer. Deixou que os lábios lhe tocassem delicadamente a nuca e depois os lóbulos em movimentos tão suaves quanto as notas de Satie. As mãos. Estendeu-lhas sem se virar. Tocaram-se dedos, palmas, cumpriu-se o ritual do reconhecimento no mapa astral das linhas, onde se cruzam destinos e se traçam amores. Pareceu-lhe que afinal a textura da pele tinha uma delicadeza já sentida, na tangência sublime das rosas. Foi como se tudo passasse do encantamento musical para a clareira de um bosque. O cheiro da madeira, a urze, os eucalíptos, a flora intensa da mulher, perturbaram-lhe a nitidez do pensamento. Sentiu a perdição infernal da posse e na boca o sabor inusitado de amoras silvestres.
Entre o ser e a existência cruzam-se por vezes fios invisíveis de desejo, ora suaves, movimentados pelas mãos de um anjo, ora cegos como se movidos pelos instintos mais primários. Porém o que sentia parecia ser um todo amalgamado de entrega, consubstanciado no abandono ao sortilégio, ou de acção imediata materializada na necessidade de mergulhar profusamente no corpo daquela mulher, num banho de perfume que queria eterno. Virou-se…
Posted by Álvaro Lins | 3:58 da tarde